Introdução
● Padre Paul Dudon, S.J., na revista dos jesuítas de França “Études” (5 de novembro de 1923, pp. 257-267), escreveu um interessante artigo sobre “O Cardeal Mariano Rampolla Del Tindaro”, por ocasião da publicação do livro de Dom Pietro Sinopoli Di Giunta intitulado “Mariano Rampolla Del Tindaro” (Roma, Pustel, 1923). Rampolla morrera dez anos antes. Em seu livro, Dom Sinopoli, que fora encarregado oficialmente pelo Papa Bento XV de redigir a biografia do Cardeal siciliano, escrevia que Rampolla tornou-se padre a 17 de março de 1866; em fevereiro de 1870, doutor em teologia e, seis meses depois, em agosto, doutor in utroque jure. Daí passou a fazer parte da Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários e, depois, da Propaganda Fide. De 1875 a 1877, esteve em Madrid como auditor da Nunciatura Apostólica, tudo isso sob o Pontificado do Bem-Aventurado Pio IX (1846-1878). De 1877 a 1882 passou cinco anos no Secretariado da Propaganda Fide e, de 1882 a 1887, outros cinco como Núncio Apostólico em Madrid.
Rampolla e Leão XIII
Em 27 de maio de 1887, Rampolla foi criado Cardeal por Leão XIII (1887-1903) [1. Cfr. Eduardo Soderini, Leone XIII, 3 vol., Milão, Mondadori, 1932-1933.] e nomeado Secretário de Estado a 3 de junho. Tinha apenas quarenta e quatro anos. O Padre Dudon escreve à p. 258 do artigo citado que ele, quando em 1912 apareceu um livreto venenoso e anônimo intitulado “La politica di Leone XIII, da Luigi Galimberti a Mariano Rampolla” [A política de Leão XIII, desde Luigi Galimberti até Mariano Rampolla], permitiu-se interrogar discretamente o Cardeal sobre que meios utilizar para “controlar” a obra anônima. O Cardeal respondeu-lhe que só o Papa poderia revelar os documentos da Secretaria de Estado. O jesuíta francês escreveu, por isso, que, na falta de documentos então sub secreto, havia que se contentar com o que resultava da ação pública do Cardeal Rampolla. Ora, desde que este foi Secretário de Estado (1887-1903), o Pontificado de Leão XIII refulgiu com documentos doutrinais tão significativos quanto – senão ainda mais que – os da década anterior, na qual fora Secretário de Estado o Cardeal Galimberti.
● De 1878 a 1887, sob a Secretaria Galimberti, as encíclicas mais famosas são: a Aeterni Patris de 1879, sobre a revivescência filosófica do tomismo; Diuturnum de 1881, sobre o governo civil; Humanum genus de 1884, sobre a maçonaria; Immortale Dei de 1885, sobre a constituição cristã dos Estados.
● Com a Secretaria Rampolla (1887-1903) temos a Libertas de 1888, que condena o liberalismo e o catolicismo-liberal; Sapientiae christianaede 1890, sobre as relações de subordinação entre Estado e Igreja;Rerum novarum de 1891, sobre a questão social e a condenação do liberalismo econômico bem como do socialismo, para reafirmar a doutrina social da Igreja; Au milieu de 1892, sobre as formas de governo em França, que desencadeará tantas críticas de “Ralliement” seja contra Leão XIII como contra Rampolla; Inimica vis de 1892, sobre a condenação da maçonaria na Itália; Custodi della fede do mesmo ano e sobre o mesmo assunto; Providentissimus de 1893, sobre os estudos bíblicos e a condenação do uso da pura filologia em campo exegético sem o estudo da interpretação da Sagrada Escritura dada pelos Padres da Igreja; Satis cognitum de 1896, sobre a natureza da Igreja Romana; Divinum illud munus de 1897, sobre o Espírito Santo, verdadeira obra-prima de teologia dogmático-mística anti-americanista; Annum Sacrum de 1899, sobre a consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus, o “novum labarum” – analogamente ao antigo, de Constantino (“in hoc signo vinces”) –, para trazer a vitória sobre a modernidade, que se encarniça cada vez mais contra a Igreja, como aquele com que Constantino sobrepujara o paganismo; finalmente Graves de communi de 1901, sobre a condenação do proto-modernismo social.
● Como se vê, o programa doutrinal de Leão XIII, também e sobretudo durante a Secretaria Rampolla, foi antiliberal, anti-laissez-faire, antimaçônico e anti proto-modernismo/social e ascético, tudo à luz do tomismo verdadeiro cujo renascimento favorecera com a Aeterni Patris. Portanto, a partir dos atos postos por Rampolla-Pecci, dos quais são patentes as intenções objetivas, já que as subjetivas só Deus conhece, não se pode absolutamente afirmar que Leão XIII e Rampolla fossem liberais, republicanos, revolucionários ou mesmo maçons. E nem sequer somente Rampolla, já que Leão XIII à beira da morte declarou sobre ele: “nós trabalhamos juntos” (p. 258).
O Ralliement
● No que se refere ao supramencionado Ralliement, Dom Sinopoli di Giunta recorda a doutrina católica segundo a qual o Papa pode e deve intervir nas questões de moral social ou política, de modo que a teoria “regalista” (somente o rei comanda in temporalibus, não a Igreja, e mesmo em alguns casos esta depende do juízo do rei) e a “liberal” (separação entre temporal e espiritual, de modo que a Igreja deve se ocupar somente das questões religiosas privadas e não das públicas e sócio-políticas) são ambas falsas e condenadas pelo Magistério constante da Igreja e pelo Direito Público Eclesiástico. Ora, em 1892 (Au milieu) os conselhos teóricos que Leão XIII deu aos católicos franceses foram públicos, especulativamente claros, nítidos, reiterados, conformes à doutrina política aristotélico-tomista e ao Magistério tradicional da Igreja. Todos os que não querem obedecer carecem de espírito de obediência, ou seja de espírito católico tout court (p. 260).
● O padre jesuíta Dudon, com a perspectiva proporcionada pelo tempo, escreve, pelo contrário, que a prática do Papa Pecci na França pouco antes de 1892 e em vista do citado Ralliement foi inspirada por uma grande (quiçá excessiva) prudência frente aos ataques da III República francesa contra a Igreja e a religião: a escolha de muitos Núncios Apostólicos enviados a Paris foi muito aberta e não inclinada à intransigência prática, assim como a promoção de bispos franceses semelhantes, que não estavam em odor de ultramontanismo ou intransigentismo. Em suma, malgrado a pureza doutrinal do plano leonino, a sua prática em França talvez tenha sido alicerçada exageradamente na diplomacia eclesiástica, que, embora tenha o seu valor e utilidade, deve estar sempre unida à firmeza inclusive prática e não somente doutrinal. Talvez em França, ao contrário da Itália onde reafirmou o non expedit de Pio IX (abolido depois por São Pio X), Leão XIII tenha se mostrado demasiado discreto na ação de combater as leis iníquas da III República. Essa atitude prática de não-beligerância contribuiu para dissolver a coesão do Episcopado e do laicado francês. A prática excessivamente diplomática nos enfrentamentos com a III República comportava o perigo de não reconquista dos direitos de Cristo e da Igreja, perdidos em França de maneira maciça a partir de 1870. Daí a debilidade de ação católica, que não teve sucesso em formar o “grande partido de homens honestos” querido por Leão XIII para cristianizar as leis do parlamento francês. Em suma, a prática da encíclica leonina de 1892 foi falida. Embora as intenções objetivas e adoutrina especulativa de Leão XIII fossem plenamente ortodoxas, aprática foi deficiente. Pode-se concluir que na prática Leão XIII fracassara, não alcançara o objetivo previamente estipulado? Sim. É lícito dizer que na teoria a sua doutrina política era liberal ou revolucionária? Absolutamente não. Isso segundo o Pe. Dudon.
● Silvio Furlani, no verbete “Rampolla” da Enciclopedia Cattolica (Cidade do Vaticano, 1953, vol. 10, cols. 517-518), explica melhor do que o supracitado padre jesuíta a conjuntura na qual se encontrava (sem poder contar com “a perspectiva proporcionada pelo tempo”) no fim do século XIX a Santa Sé: «O isolamento político da Santa Sé, diante da Itália aliada à Áustria-Hungria e à Alemanha, moveu Rampolla, apoiado pelo Pontífice, a normalizar as relações com a França republicana e, em particular, a inserir as forças católicas na vida política da nação, da qual haviam ficado alheias desde 1870, por causa de seu parti pris monarquista [2. Por onde, doutrinariamente, da parte francesa havia uma espécie de “pecado ou excesso de monarquia”, pois não é só esta a única forma de governo legítima, como explicaram Aristóteles e Santo Tomás e o Magistério constante da Igreja. Ao passo que, para Leão XIII/Rampolla, pode-se falar no máximo de inadequação prática. Além disso, o jesuíta Dudon não leva suficientemente em conta as circunstâncias extremamente graves em que se lançavam a Europa e a Sé Apostólica na véspera do primeiro conflito mundial e que Rampolla/Pecci deviam, pelo contrário, ter em conta. “A crítica é fácil, a arte de bem governar é difícil”.]. Esse ralliement, ditado pela necessidade de salvaguardar a Santa Sé contra o anticlericalismo do governo italiano [...], foi porémmal interpretado pelas esferas de governo vienenses como uma tomada de posição contra as potências da Tríplice Aliança. E foi precisamente o temor de um Papa filo-francês que determinou Francesco Giuseppe a fazer levar o veto à eleição ao Pontificado de Rampolla no Conclave de agosto de 1903» (col. 518). Portanto, a pretensa filiação de Rampolla à maçonaria (dado, e não concedido, que tivesse existido) não desempenhou papel nenhum no affaire.
● No que se refere a Rampolla, a sua doutrina como a sua ação (parelha à de Leão XIII) foi sempre dirigida a combater a Revolução, que tinha como fonte a judaico-maçonaria, o liberalismo, o laissez-faireeconômico, o catolicismo liberal e um certo modernismo sócio-político incipiente (1901). Ademais, quanto às acusações dirigidas a ele de ser filiado à maçonaria, não há uma única prova certa e nem sequer probabilidade séria (caso haja, ficarei feliz de podê-las conhecer), mas somente boatos sem nenhuma confirmação. Certamente muitos autores (alguns inclusive sérios), de boa fé, tomaram como autêntica a primeira notícia difundida, sem verificar, porém, a veracidade da fonte. Ora, isso em teologia moral se chama materialmente ou objetivamente “calúnia”, a qual em matéria grave (e no caso Rampolla a matéria é gravíssima, pois ele teria morrido como maçom, portanto excomungado, em pecado mortal e normalmente condenado eternamente) é gravemente pecaminosa, materialmente ou objetivamente, para quem a faz e não para quem a sofre.
Os últimos anos de Rampolla
Durante o Pontificado de São Pio X, Rampolla viveu seus últimos dez anos de vida (1903-1913). «Nunca lhe escapou uma única palavra que tivesse podido diminuir a autoridade do Pontífice reinante [...]. Alguns o qualificaram de maçom. Se essas vozes tivessem chegado aos seus ouvidos, ele teria repetido o seu adágio, tirado de Santa Teresinha do Menino Jesus: “os ultrajes são uma música muito salutar”» (p. 266). Ademais, em 1912 São Pio X em pessoa confiou-lhe a direção da Biblioteca Vaticana, mas um ano depois o Cardeal Rampolla expirava, a 17 de dezembro às onze e meia da noite, após a recitação do Rosário, enquanto os médicos dele tratavam e esperavam ainda poder curá-lo (p. 267). Portanto, é certo que ele não morreu nos braços de São Pio X durante uma audiência por ocasião da qual teriam sido vistas as insígnias maçônicas que ele carregava consigo, como dizem, contra a realidade dos fatos, os seus detratores.
● De resto, também o Bem-Aventurado Pio IX fora atingido pela mesma calúnia: teria sido maçom! Cfr. Yves Chiron, Pie IX et la Franc-Maçonnerie [Pio IX e a Franco-Maçonaria], Niherne, Edizioni BCM, 1995, que destrói essa calúnia.
“É seguro que não ignorais, veneráveis irmãos, que em nossos tempos muitos dos inimigos da Fé Católica dirigem seus esforços especialmente em pôr toda opinião monstruosa no mesmo nível que a doutrina de Cristo, ou em confundir esta com aquelas, e assim tentam eles cada vez mais propagar aquele ímpio sistema da indiferença de religiões.
Mas muito recentemente, trememos em dizê-lo, homens apareceram que lançaram tais reprimendas sobre o Nosso nome e a Nossa dignidade Apostólica, que eles não hesitam em caluniar-Nos, como se Nós compartilhássemos da loucura deles e favorecêssemos o mencionado sistema perversíssimo.
A partir das medidas, de modo nenhum incompatíveis com a santidade da religião católica, que, em certos casos relativos ao governo civil dos Estados Pontifícios, Nós consideramos apropriado por bondade adotar, como tendentes à utilidade e prosperidade públicas, e a partir da anistia graciosamente concedida a alguns dos súditos do mesmo Estado no início do Nosso Pontificado, parece que esses homens quiseram inferir que Nós pensamos com tanta benevolência acerca de toda classe de gente, a ponto de supor que não somente os filhos da Igreja, mas também o restante, independentemente do quão alienados da unidade católica permaneçam, igualmente estejam no caminho da salvação, e possam chegar à vida eterna.
Ficamos paralisados de horror e quase sem palavras para expressar Nossa detestação dessa nova e atroz injustiça que Nos é feita.
Amamos, de fato, toda a humanidade com o mais íntimo afeto de Nosso coração, mas não de outro modo senão no amor de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo, que veio para buscar e salvar aquilo que havia perecido, morreu por todos, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade; por isso, enviou Seus discípulos para o mundo inteiro, para pregar o Evangelho a toda criatura, proclamando que quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado; aquele, pois, que quiser ser salvo, venha para a coluna e o firmamento da Fé, que é a Igreja; venha para a verdadeira Igreja de Cristo, que em seus Bispos e no Romano Pontífice, o chefe e cabeça de todos, tem a sucessão da autoridade apostólica, jamais interrompida em momento algum; a qual nunca considerou nada mais importante do que pregar e, por todos os meios, guardar e defender a doutrina proclamada pelos Apóstolos, por mandato de Cristo; a qual, desde o tempo dos Apóstolos em diante, aumentou em meio a dificuldades de todos os tipos; e, sendo ilustre através do mundo todo pelo esplendor dos milagres, multiplicada pelo sangue dos mártires, exaltada pelas virtudes de confessores e virgens, reforçada pelos sapientíssimos testemunhos dos Padres, floresceu e floresce em todas as regiões da terra, e brilha refulgente na perfeita unidade da Fé, dos Sacramentos e da santa disciplina.”
(PIO IX, na Alocução aos Cardeais no Consistório de 17 de dezembro de 1847.)
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