Pré-mística natural e mística sobrenatural
Rev. Pe. Réginald GARRIGOU-LAGRANGE, O. P.
(Angelicum, 1933)
Fala-se muito, atualmente, de certos “místicos de fora” que, sem pertencer visivelmente à verdadeira Igreja de Cristo, teriam tido a vida da graça e da caridade no grau superior que caracteriza a vida mística.
Desse ponto de vista foram escritos os estudos de Louis Massignon [1] e Asin Palacios [2] sobre o Islame. Esses trabalhos, que apresentam sobretudo documentos, pedem ser examinados com cuidado, e cremos que seus autores não aceitariam as conclusões gerais que alguns acreditaram poder tirar a partir deles.
O Sr. Émile Dermenghem, em obra recente [3], vai muito mais longe do que eles. Ele chegava mesmo a escrever, em 1930, sobre diversos místicos muçulmanos estudados nestes últimos anos: “Todos esses sufis, pensadores, poetas ou santos exprimiram a grande experiência mística: morrer para o mundo para viver em Deus, com fórmulas tocantes e análogas às dos Padres, Doutores e místicos cristãos, e frequentemente também dos vedantinos hindus. O que confirmaria a tese de R. Guénon sobre a universalidade da tradição: ‘quod ubique, quod semper, quod ab omnibus’, segundo a fórmula católica. Eles não cessam de repetir, com os escolásticos, que as criaturas não têm outro ser além daquele que elas recebem de Deus e, com São Paulo, que é nele que nós temos a vida, o movimento e o ser.” [4]
A esse respeito, o Padre Eliseu da Natividade fazia, aqui mesmo [5], esta justa observação: “Não sabemos o que o Sr. Dermenghem pretende entender por grande experiência mística; em todo o caso, jamais a Igreja tomará como critério único da verdade essa universalidade da tradição.”
[1. Louis Massignon, La passion d’Al-Hosayn-ibn-Mansour-al-Hallâj, martyr mystique de l’Islam, 2 vol., Paris, Geuthner, 1922. — Le Dîwân d’al-Hallâj, diário asiático, janeiro-março de 1931.]
[2. Miguel Asin Palacios, El Islam cristianizado, estudio del “sufismo” a través de las obras de Abenarabi de Murcia, Madrid, 1931.]
[3. Émile Dermenghem, L’Éloge du vin (Al Khamriya), poema místico de Omar ibn al Faridh, “L’Anneau d’or”, Les Éditions Véga, Paris, 1931. Tradução integral acompanhada de notas, introdução crítica e ensaio histórico e teológico sobre a mística muçulmana.]
[4. Nouvelles Littéraires, 25 de janeiro de 1930. Resenha da obra do Pe. Bruno O. C. D. sobre São João da Cruz.]
[5. Études Carmélitaines de outubro de 1931, p. 162: “L’expérience mystique d’Ibn’Arabi est-elle surnaturelle ?”]
Por outro lado, racionalistas e sobreviventes do modernismo se esforçam por reduzir até mesmo a experiência mística descrita por São João da Cruz à mística natural que se encontra, em níveis diversos, em todas as religiões e a qual, do ponto de vista deles, é superior a todo Credo. Destarte, a revelação dos mistérios da salvação, tal como é proposta pela Igreja, a Pessoa mesma de Nosso Senhor, Seu exemplo, os sacramentos instituídos por Ele, nada trazem de essencial ao católico, mas somente uma maior segurança, estando o essencial além e acima: numa experiência mística que se encontraria nas almas mais interiores de todas as religiões, e que não seria outra coisa que o desabrochar natural do sentimento religioso.
Essa questão, aos olhos do teólogo, é uma das formas mais delicadas do problema já bastante difícil da salvação dos infiéis, e ela se apresenta cada vez mais, hoje em dia. [6]
Por pouco que se desvie do verdadeiro caminho, pende-se para erros diametralmente opostos, que é bom recordar no início de toda investigação. Na primeira parte deste estudo, veremos como o problema se põe, sua importância e suas dificuldades; na segunda parte, tentaremos enunciar os princípios que possam permitir resolvê-lo.
[6. O Padre Clérissac, O. P., notara bem como os grandes problemas de nosso tempo desembocam neste. Escrevia ele:
“Existe um fato notável. Não o chamo de o conflito das grandes tendências modernas (científicas, sociais e místicas), mas de sua convergência, pois elas convergem por toda parte na direção de uma religião única, sejam quais forem aliás os desígnios daqueles que as representam.
Sem dúvida, a questão científica se pôs em todos os tempos, se bem que antigamente ela provavelmente não implicasse, como hoje, enigmas filosóficos nem problema algum de história e de exegese.
Sob as formas variadas da escravidão e do pauperismo, a questão social sempre nos assombrou.
Entre as formas extremas do iluminismo e do quietismo, as aspirações místicas encontraram no passado múltiplas aberturas para se extravasarem.
Mas, em nossos dias, essas tendências adquiriram um aspecto especial e uma vida nova. Cada uma delas toma algo de empréstimo às duas outras, e comunica-lhes em troca algo de si mesma: a ciência pretende ser religião, o socialismo quer ser uma moral e se apresenta como culto febril à justiça; a mística, por seu turno, defende o seu direito de ser científica. Some-se a isso que essas três tendências, por seu conteúdo e sua ação, concorrem para realizar, sob uma forma definida e suprema, seja o conhecimento experimental de Deus, seja a apoteose do homem. Não considero exagerado ver aí o maior acontecimento da história desde as invasões bárbaras. Não tomemos um fato desses por simples manifestação de forças cegas. Acautelemo-nos contra a atração sedutora dessas tendências que cativam por toda parte os espíritos e os corações; acautelemo-nos quanto à importância das transformações inevitáveis que daí resultarão.”
De fato, a estas aspirações gerais dos povos, respondem as últimas encíclicas do Soberano Pontífice sobre Cristo Rei, sobre Sua influência santificante em todo o Seu corpo místico, sobre a família e a santidade do matrimônio cristão, sobre as questões sociais, sobre a necessidade de reparação, sobre as missões. Em todas essas encíclicas está em jogo o reinado de Cristo sobre toda a humanidade. De tudo isso segue-se que, para ela conservar a preeminência que ela deve ter sobre a atividade científica e sobre a atividade social, a religião, a vida interior, tem de ser profunda, tem de ser uma verdadeira vida de união com Deus. É uma necessidade manifesta.]
I. – POSIÇÃO DO PROBLEMA
Os erros extremos a evitar
Todo mundo conhece as duas posições, radicalmente contrárias uma à outra, que a Igreja condenou como erros graves. Uma delas é mais que heresia: não escolhe, no depósito da Revelação, o que ela quer conservar; nega toda revelação sobrenatural.
Por um lado, com efeito, o naturalismo, tal como se encontra por exemplo em Espinosa e sucessores, nega absolutamente a ordem sobrenatural, tanto o milagre como a vida da graça; ele não vê, por conseguinte, nas diferentes religiões nada além da evolução natural do sentimento religioso. O modernismo chegava também a essa conclusão, renovando e ampliando o erro pelagiano [7]. Desse ponto de vista, o catolicismo é, no máximo, a forma mais elevada da evolução do sentimento religioso, e a mística de que fala São João da Cruz é uma forma interessante de mística natural, a qual se exprime alhures em linguagem panteísta, como no Oriente com os budistas ou entre os ocidentais com os teósofos que se inspiram em Jacob Boehme ou na segunda filosofia de Schelling.
O extremo oposto ao naturalismo nada mais é que o pseudo-sobrenaturalismo que aparece, sob formas variadas, nos predestinacianos, em Wiclef, nos protestantes e nos jansenistas; sustentaram todos eles que, por decorrência do pecado original, a natureza humana está tão corrompida que todos os atos dos infiéis são pecados, e as virtudes aparentes deles são vícios esplêndidos, que procedem do amor próprio e do orgulho.
Contra estes últimos erros, segundo a doutrina católica a predestinação não é necessária para realizar ações até mesmo excelentes, nem a graça santificante nem sequer a fé infusa são necessárias para fazer uma obra moralmente boa (ad faciendum actum ethice bonum), como pagar suas dívidas, dar alguns bons princípios a seus filhos. O homem caído pode inclusive, sem a graça, ter um certo amor ineficaz por Deus autor da natureza, amor feito de admiração e veleidade, que podem inspirar em uma alma naturalmente poética páginas repletas de lirismo sobre as perfeições divinas. Os pagãos podem também, sem a graça, realizar atos moralmente bons; eles também são visitados pela graça atual, com os auxílios da qual podem fazer certos atos salutares, que os disponham a receber a graça habitual, princípio radical dos atos não somente salutares, mas meritórios. “Facienti quod in se est (cum auxilio gratiae actualis) Deus non denegat gratiam (habitualem).” [8] {N. do T. – Tradução livre: “A quem quer que faça o que está em seu alcance (com a ajuda da graça atual), Deus não nega a graça (habitual).”}
Pio IX diz, efetivamente, que aqueles que ignoram invencivelmente ou sem culpa própria a verdadeira religião, mas que fazem o que está em seu poder para observar a lei natural, podem por uma iluminação e uma graça de Deus chegar aos atos sobrenaturais de fé e caridade necessários à salvação; podem, noutros termos, receber a vida da graça, germe da glória, e ser salvos. [9] Esses homens “de boa vontade”, no sentido teológico da expressão, pertencem assim, como dizem assaz geralmente os teólogos, à alma da Igreja. [10]
Vê-se como a doutrina católica se eleva, assim, acima dos erros diametralmente opostos do naturalismo, que nega a ordem da graça, e do pseudo-sobrenaturalismo estreito, que nega que Deus queira oferecer a todos os adultos graça suficiente para o cumprimento dos preceitos necessários à salvação.
Mas permanece, todavia, um grande mistério: o da predestinação, e é uma grandíssima graça pertencer visivelmente à Igreja, beneficiar-se de seu ensinamento infalível, do santo sacrifício da missa e dos sacramentos. Daí a necessidade das missões.
[7. Cf. Bulletin de la Société Française de Philosophie, maio-junho de 1925: Saint Jean de la Croix et le problème de la valeur noétique de l’expérience mystique; cf. ibid., p. 87: Observações escritas pelo Sr. M. Blondel ao Sr. J. Baruzi sobre o caráter infuso da contemplação de que fala São João da Cruz. Ver também R. Dalbiez, Une nouvelle interprétation de saint Jean de la Croix (Vie Spirituelle, 1928): “A interpretação integral da experiência mística, ou será teológica, ou não existirá.” — Pe. Benoît Lavaud, O. P., Psychologie indépendante et prière chrétienne (Revue Thomiste, 1929) e Les problèmes de la vie mystique (Vie Spirituelle, junho de 1931).]
[8. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6: Utrum homo possit sese ad gratiam praeparare sine gratia. – “Ad hoc quod praeparet se homo ad susceptionem doni gratiae habitualis oportet praesupponi aliquod auxilium gratuitum Dei interius animum moventis, sive inspirantis bonum propositum” et Ia IIae q. 112, a. 3: Utrum ex necessitate detur gratia, se praeparanti ad gratiam. – “Praeparatio (non secundum quod est a libero arbitrio, sed) secundum quod est a Deo movente, habet necessitatem ad id ad quod ordinatur a Deo, non quidem coactionis, sed infallibilitatis: quia intentio Dei deficere non potest, secundum quod Augustinus dicit in libr. de Dono persev., c. XIV: quod per beneficia Dei certissime liberantur, quicumque liberantur.”]{N. do T. – Tradução livre da nota acima: « Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6: “Se um homem, por si mesmo e sem o concurso externo da graça, pode ou não pode preparar-se para a graça. …Ora, para que o homem se prepare para receber esse dom, não é necessário pressupor algum dom habitual suplementar na alma, do contrário continuaríamos até o infinito. Mas devemos pressupor um dom gratuito de Deus, que move a alma interiormente ou inspira o bom desejo.” E também Ia IIae, q. 112, a. 3: “Se a graça é ou não é dada necessariamente a todo aquele que se prepara para ela. …A preparação do homem para a graça vem de Deus, como Motor, e do livre arbítrio, como movido. Logo, a preparação pode ser considerada…tal como ela é desde Deus, o Motor, e assim ela tem uma necessidade – não de coerção, claro, mas de infalibilidade – quanto àquilo a que ela está ordenada por Deus, já que a intenção de Deus não tem como falhar, conforme o dizer de Agostinho em seu livro sobre a predestinação dos santos (De dono persev., 14) de que ‘pelas boas dádivas de Deus todo aquele que é libertado, é com plena certeza libertado’.” »}
[9. “Notum Nobis Vobisque est, eos qui invincibili circa sanctissimam nostram religionem ignorantia laborant, quique naturalem legem ejusque praecepta in omnium cordibus a Deo insculpta sedulo servantes ac Deo obedire parati, honestam rectamque vitam agunt, posse, DIVINAE LUCIS ET GRATIAE OPERANTE VIRTUTE, aeternam consequi vitam...” Denzinger, 1677.]{N. do T. – Tradução no contexto (o trecho citado na nota acima é o que vem grifado a seguir): “E aqui, queridos Filhos e Veneráveis Irmãos, é preciso recordar e repreender novamente o gravíssimo erro em que se acham miseravelmente alguns católicos, ao opinar que os homens que vivem no erro e alheios à verdadeira fé e à unidade católica possam chegar à eterna salvação. O que certamente se opõe em sumo grau à doutrina católica. Coisa notória é para Nós e para Vós que aqueles que sofrem de ignorância invencível acerca de nossa santíssima religião, que cuidadosamente guardam a lei natural e seus preceitos, esculpidos por Deus nos corações de todos, e que estão dispostos a obedecer a Deus e levam vida honesta e reta, podem, AUXILIADOS PELOS SOCORROS DA LUZ E DA GRAÇA DIVINAS, conseguir a vida eterna; pois Deus, que manifestamente vê, esquadrinha e sabe a mente, o ânimo, os pensamentos e costumes de todos, não consente, de modo algum, conforme Sua suma bondade e clemência, que ninguém seja castigado com os eternos suplícios que não for réu de culpa voluntária. Porém, bem conhecido é também o dogma católico, a saber, que ninguém pode salvar-se fora da Igreja Católica, e que os contumazes contra a autoridade e definições da mesma Igreja, e os pertinazmente divididos da unidade da mesma Igreja e do Romano Pontífice, sucessor de Pedro, ‘a quem foi encomendada pelo Salvador a guarda da vinha’, não podem alcançar a eterna salvação.” (Papa Pio IX, Quanto Conficiamur Moerore, Denzinger 1677).}
[10. Cf. Dublanchy, De axiomate: Extra Ecclesiam nulla salus, Bar-le-Duc, 1895, p. 373 ss. e art. Église, col. 2.163 ss. do Dict. de Théol. Cathol. — Capéran, Le problème du salut des infidèles (ensaio teológico), Paris, Beauchesne, p. 80 ss., 92. — Édouard Hugon, Hors de l’Église point de salut, Paris, Téqui, 2.ª ed., 1914, cap. I, II, III, IV.]
Duas tendências relativas aos “místicos de fora”e importância do problema
Ao passo que existiram, e existem ainda, erros diametralmente opostos acerca da salvação dos infiéis, pode-se distinguir, nos limites da ortodoxia, duas tendências bem diversas quanto àqueles que foram chamados de os místicos de fora.
Inclinam-se alguns em pensar que a graça santificante, a fé e a caridade infusas podendo existir em almas que não pertencem visivelmente à Igreja, se possa também encontrar nelas, com maior frequência do que se disse até aqui, a vida mística, principalmente caso reconheçamos que ela é o desabrochar normal da vida da graça.
Essa tendência leva a admitir muito facilmente que certos místicos “de fora” sejam místicos “autênticos” e mesmo, por vezes, a falar de mística muçulmana, hindu, judaica, etc., como se se tratasse, malgrado os erros que nelas se mesclam, de verdadeira mística. É-se conduzido assim a especificar que este ou aquele desses místicos de fora teve graças sobrenaturais autênticas, e mesmo graças elevadas, que fariam pensar, senão na união transformante – na VIIª Morada de Santa Teresa –, ao menos nas que a precedem. Decerto que há analogias impressionantes, notadas pelo Sr. L. Massignon e pelo Sr. Miguel Asin Palacios [11].
Mas, sob estas analogias, as questões de natureza e origem permanecem muito obscuras, e, em matéria tão delicada, o exagero, contrário a toda prudência científica, tornar-se-ia depressa tão perigoso quanto fácil. Nestas fronteiras entre a natureza e a graça, tocamos nos problemas mais árduos da teologia, e aqueles que os estudaram a vida toda hesitariam talvez com frequência em formular opinião. Sobre questões relativas aos limites entre dois domínios, o juízo só pode ser uma resultante do conhecimento aprofundado dos dois domínios considerados em si mesmos.
[11. Como notam o Sr. Maritain (Les Degrés du Savoir, p. 542) e também o Pe. Bruno, parece todavia que o caso de Ibn’Arabi, narrado pelo Sr. M. Asin Palacios, requer muito maiores reservas que o de al-Hallâj, de que trata o Sr. L. Massignon.
No número de abril de 1932 de Études Carmélitaines, o Sr. Miguel Asin Palacios, p. 139-239, cita textos impressionantes do “Sharh Hikam” de Ibn’Abbâd Rondi, que certamente fazem pensar no que, mais tarde, escreverá São João da Cruz, especialmente estas sentenças e seu comentário: “Frequentemente Deus te ensina, na noite da desolação, o que Ele não te ensina no esplendor do dia da consolação... Convém, pois, que o servidor reconheça a graça que Deus lhe dá na noite de angústia” (citado ibid., p. 152). — “As tribulações escancaram generosamente o tesouro dos dons divinos... As tribulações levam a alma à presença de Deus e a ensinam a conversar com Ele firmada na tapeçaria da sinceridade... Sê convicto da tua própria baixeza e Deus te ajudará com Sua nobreza... Dize a teu Senhor, prosternado sobre o tapete da pobreza espiritual: “Ó Rico! Quem ajudará o pobre, senão Tu?” — “Ó Forte! Quem ajudará o fraco, senão Tu?” — “Ó Nobre! Quem ajudará o vil, senão Tu?” (Ibid., p. 158).
Não se fica menos impressionado com o que é dito (ibid., pp. 118 ss.) das virtudes desse mestre: castidade, mortificação, humildade, abnegação, caridade. Essas virtudes se exprimem nestas belas sentenças: “Quem ama ser famoso não é sincero diante de Deus” (ibid., p. 140); — “Roga por aquele que te ofendeu, tua oração será ouvida” (p. 143); — “É nas tribulações que o homem pratica as virtudes interiores, dentre as quais a menor é mais meritória do que montanhas de obras exteriores de virtude. São elas, por exemplo, a paciência, a conformidade, a renúncia às coisas deste mundo, o abandono confiante à providência e o desejo de sair ao encontro de Deus” (p. 145); — “Para os que buscam a Deus, os dias de tribulação devem ser páscoas” (p. 157); — “Mediante a visita de tribulações, aquele que busca a Deus obterá uma grande pureza de coração e uma delicadeza de consciência que, por vezes, ele não obtém nem pela oração, nem pelo jejum” (p. 157); — “Que o servidor de Deus examine a obra com a qual gostaria de estar ocupado no momento mesmo de morrer, e que ele a escolha...” (p. 161); — “Engana-se aquele que se preocupa mais com suas devoções do que com suas obrigações” (p. 162); — “Há dois tipos de servidores: aquele que no estado místico se compraz em seu estado, e aquele que está com Deus que lho concede” (p. 165).
Assegura-se-nos que Ibn’Abbâd não escreveu poemas eróticos e que é por erro que se os atribuiu a ele.]
{N. do T. – A nota acima foi levemente modificada pelo autor, quando este seu estudo de out. 1933 para Études Carmélitaines foi incluído como penúltimo capítulo de seu livro de 1934 Le Sauveur et Son Amour pour Nous, passando então a concluir com o seguinte parágrafo:
« Em contrapartida, uma pessoa muito clarividente, alma de oração, que vive em Marrocos, nos escreve depois de tomar conhecimento desses textos [de Ibn’Abbâd]: “O trato cotidiano com as serventes daqui [auprès des fathmas qui nous servent (N. do T.)] me demonstrou com frequência o quanto é preciso ter circunspecção para dar um sentido ao seu vocabulário religioso e julgar acerca de sua vida interior. Constantemente, por exemplo, elas empregam as mesmas palavras que nós para significar abandono à vontade divina, e contudo, que abismo entre seu abatido fatalismo e nosso vívido abandono cristão! Isso me ajuda a compreender como pode haver profunda diferença de fonte para os estados mais elevados que têm analogias aparentes.” »}
Assim, diversos espíritos formulam reservas, que ajudam a colocar o problema mais profundamente e que mostram melhor sua importância.
Para começar, mesmo admitindo que a vida mística seja o pleno desabrochar normal da vida da graça, este cimo, embora normal, permanece, não obstante, um cimo. E, por causa da negligência, da preguiça espiritual, da falta de generosidade na provação e falta de docilidade ao Espírito Santo, esse cimo já é bem raramente atingido dentro da Igreja Católica, mesmo nas ordens religiosas, mesmo recebendo nelas tantas luzes sobrenaturais, tantos exemplos, tantas graças, especialmente pelos sacramentos, sobretudo pela comunhão cotidiana. Tanto mais será difícil de atingi-lo quando se está privado desses múltiplos auxílios!
Ademais, como nos escrevia recentemente um missionário bem inteirado destas questões, é facílimo, selecionando bem – e não são escolhas desse gênero que se toma como base? –, reunir grande número de textos descritivos desses místicos “de fora” que parecem exprimir-se, com espantosa similitude de termos, como São João da Cruz sobre o essencial da vida mística. E se chegará a isto:
a) Para todos: a essência da contemplação é o conhecimento geral, amoroso, confuso, indistinto, “sem formas nem imagens”, que o Doutor do Carmelo ensina.
b) Para todos: a conduta prática a observar na contemplação é uma espécie de “nada” universal, e consiste em “abstrair o entendimento de toda noção particular” (Subida do Carmelo, l. II, c. XII) e em “dedicar-se à atenção amorosa em Deus, sem nada querer especificar” (Chama Viva, III, 3, § 6).
c) Para todos, finalmente (e é isto talvez o mais notável) o apogeu e perfeição da vida mística existe quando a alma, “transformada totalmente em seu Bem-Amado”, tornou-se “Deus por participação” (Cântico Espiritual, XXII).
Parece assim que todas essas almas, seja qual for o caminho pelo qual tenham progredido, com ou sem o auxílio da doutrina infalível e dos sacramentos da Igreja visível, se reúnem no topo. Mas reúnem-se deveras?
A questão, como se vê, é das mais importantes:
Admitindo, de nossa parte, que a mesma graça santificante seja pressuposta nessas almas diversas, acontece que do ponto de vista exposto mais acima tudo pareceria se passar como se essa graça (com a fé nas duas primeiras verdades de ordem sobrenatural: [i] Deus, autor da salvação, existe e [ii] Ele recompensa as boas obras; e com a caridade) fosse suficiente para chegar até mesmo aos altos graus da união sobrenatural com Deus, sem ser necessário ter conhecimento explícito do mistério da Encarnação redentora e receber os sacramentos. Essa fé explícita na pessoa divina do Salvador, Seus exemplos, os sacramentos, os ensinamentos e diretrizes da Igreja pareceriam, por conseguinte, não trazer ao católico nada além de um auxílio secundário, para não dizer acidental, uma maior segurança, estando o essencial alhures e acima. [12]
Mais ainda, o próprio São João da Cruz (que, na realidade, como é evidente, fundamenta toda a sua mística na plenitude da Revelação transmitida por Nosso Senhor, no conhecimento explícito do mistério da Cruz perpetuado no altar durante a Missa e nos sacramentos, especialmente na união com o Salvador pela comunhão, a uma só vez espiritual e sacramental) não pareceria porventura, no fim das contas, definir e descrever a contemplação de uma maneira que nada mais teria de especificamente cristão e católico, com notas e definições das quais se servem, de fato, para “reconhecer” e “autenticar” os místicos de fora? Ficaria assim suficientemente salvaguardada a palavra de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”? [13]
A questão assim formulada é grave. Seguindo-se a primeira tendência de que falamos, e que se apresenta sob formas mais ou menos acentuadas, acaso não se chegaria, sob a arremetida do atual sincretismo, a perder pouco a pouco o sentido da verdadeira contemplação, que é chamado por São Paulo o sentido de Cristo (I Cor., II, 16)? É a pergunta que faz o missionário de que falávamos mais acima.
Responder-se-á, sem dúvida, que a doutrina da fé implícita vai justamente contra esse sincretismo e não significa, de maneira alguma, que a fé explícita e os sacramentos tenham apenas valor acidental. Sobre este ponto, o Padre Eliseu da Natividade [14] fez justas observações: “A dificuldade começa – escrevia ele – no que diz respeito à fé no Mediador. O adulto não pode ser justificado a não ser crendo de uma maneira ou de outra na Redenção operada por Cristo. Esta fé no Cristo Redentor admite três estados ou, se se quiser, três graus diferentes: o conhecimento explícito dos mistérios da Encarnação e da Redenção, tais como nós, os cristãos, conhecemo-los; a ideia de um mediador que se interpõe entre Deus e os homens; finalmente a convicção de que Deus, em Sua misericórdia, proveu de algum modo à salvação do gênero humano. Esse último grau de conhecimento do Redentor chama-se fé implícita em Cristo e confunde-se, de certa maneira, com a fé (sobrenatural) na Providência e a crença em um Deus remunerador… Crer que Deus salva os homens pelos meios que Lhe aprazem é possuir fé implícita em Cristo Redentor… (e isso era suficiente, diz Santo Tomás, antes da vinda de Cristo)… É difícil de sustentar que as condições tenham mudado para aqueles que, tendo vivido depois de Cristo, nunca ouviram falar d’Ele” [15].
Resta, contudo, uma séria dificuldade, mesmo para aqueles que admitam a opinião segundo a qual a fé explícita em Cristo Redentor não seja de necessidade de meio após a promulgação do Evangelho. Há, efetivamente, notável diferença entre o estritamente necessário para a salvação ou para evitar a danação e o que a união mística com Deus demanda, sobretudo a união em seus graus mais elevados.
Chegamos, assim, a perguntar-nos se não se descura de considerar, aqui, duas coisas importantíssimas.
1.º Encontra-se nesses “místicos de fora” o conjunto de condições, sobretudo a purificação profunda, que a verdadeira mística exige, ou seja, a contemplação sobrenatural e a íntima união com Deus que dela resulta?
2.º Não há neles, se estão em estado de graça, antes uma mística ou pré-mística natural, isto é, uma contemplação natural de Deus, que lembra a de Platão e Plotino, ou mesmo a de certos platônicos cristãos, como Malebranche e os recentes ontologistas que conhecemos? [16]
Se omitirmos de considerar muito atentamente esses dois pontos, seremos conduzidos, precisamente como o foram os ontologistas, a uma confusão mais ou menos latente entre natureza e graça, e acabaríamos falando em uma mística universal, mais ou menos bem balbuciada; a nossa seria apenas a mais correta [17]. E não somente essa confusão seria deplorável para nós, mas seria também sem proveito algum para as almas de boa vontade que, fora da Igreja visível, possam tender à verdadeira vida interior, à conversação íntima e profunda com Deus. A questão, como se vê, é grave; importa não se pronunciar levianamente: toda precipitação aqui seria especialmente perigosa.
Como diz o Pe. Allo, O. P. [18]: “Hoje, nos meios dedicados ao estudo e à admiração da mística, um sincretismo perigoso começa a delinear-se; e os fiéis dotados de ciência e de zelo não deveriam fechar os olhos para essa ameaça. Isso precisava ser dito.”
[12. Por isso, os tomistas defendem geralmente como mais provável, com Santo Tomás (IIa IIae, q. 2, a. 7), esta tese bem conhecida: “Post Evangelium sufficienter promulgatum, fides explicita Incarnationis est omnibus necessaria necessitate medii ad salutem.” {N. do T. – Tradução livre: “Depois de o Evangelho ter sido suficientemente promulgado, a fé explícita na Encarnação é, para todos, necessária com necessidade de meio para a salvação.”}
Santo Tomás, loc. cit., diz: “Post tempus gratiae revelatae, tam majores quam minores tenentur habere fidem explicitam de mysteriis Christi.” {N. do T. – Tradução livre: “Depois de a graça ter sido revelada, tanto os doutos quanto os simples estão obrigados a ter fé explícita nos mistérios de Cristo.”}. — Item, IIa IIae, q. 2, a. 8, fine, ad 1m et 2m.
A razão disso é que Jesus Cristo é o caminho para chegar à salvação: “Ego sum via, veritas et vita” {“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”} (João, XIV, 6). E São Pedro diz em Atos IV, 12: “Non est aliud nomen datum hominibus, in quo oporteat nos salvos fieri” {“Nenhum outro nome foi dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”}. Não há como ser salvo a não ser por Cristo, sendo incorporado a Ele, pertencendo a Seu corpo místico; isso parece exigir nos adultos, após a realização do mistério da Encarnação, uma fé explícita nesse mistério, uma fé explícita n’Aquele que apaga os pecados do mundo.
Sem embargo, podemos nos indagar se o Evangelho deve ser considerado como promulgado lá onde ele ainda não foi pregado e lá onde sua pregação foi completamente esquecida. Em todo caso, mística verdadeira pressupõe fé, no mínimo implícita, no Redentor.]
[13. São João da Cruz, no Cântico Espiritual, estrofe 37, diz que os mistérios que há em Cristo recebem o nome de cavernas, para simbolizar sua profundidade e grandeza; que os tesouros que Ele encerra são semelhantes a uma mina inesgotável; e que aquilo que os Doutores aí descobriram representa apenas uma mínima parte. Na Subida do Carmelo, l. II, c. 20, ele mostra que é faltar com o respeito para com Cristo, que trouxe a plenitude da Revelação, pedir revelações privadas. Ele insiste na palavra divina proferida no Tabor: “Este é o meu Filho bem-amado, em quem pus minha complacência; ouvi-o” (Mt., XVII, 5). São João da Cruz crê ademais, como Santa Teresa, que o contemplativo não deve, por seu próprio movimento, afastar-se da consideração da Humanidade de Cristo.]
[14. Études Carmélitaines, out. 1931, p. 162, art. já citado.]
[15. Ibidem, p. 163.]
[16. O Padre Allo, O. P., Mystiques Musulmans (Vie Spirituelle, 1.º de maio de 1932, p. [110]), cita as palavras do persa Bisthâmi, que transformado pela união, em nome de Alá exclamava: “Não há outro Deus além de mim, adorai-me. Glória a mim! Quão grande é a minha majestade!”, e também aquelas de Al Hallâj: “Ana al Haqq. Eu sou a Verdade.” — “Levemos em conta”, diz ele, “o exagero oriental; mas, também em território cristão, a Inquisição teria tido que se haver com eles… No que toca ao ‘puro amor’ deles, será mesmo de admirar aquela boa mulher (de que fala E. Dermenghem, op. cit., p. 30) que queria apagar o inferno com seu balde de água e queimar o céu com sua tocha, para que Deus deixasse de ser amado por outra razão que não por Si mesmo?” — Esse artigo excelente do Padre Allo deve ser lido na íntegra, por sua incidência na questão que nos ocupa.]
[17. A propósito, por exemplo, do livro do Sr. E. Dermenghem, o Padre Allo escreve justamente (loc. cit., p. [114]): “Teríamos desejado que o distinto tradutor e comentador se apoiasse um pouco mais na crítica e fizesse ver melhor que ele capta o alcance de todas essas diferenças. De fato, uma confiança nobilíssima no espírito humano esclarecido e dirigido por Deus, uma largueza de coração quase demasiadamente ‘católica’, levaram-no a descobrir por toda parte os mesmo efeitos da iluminação divina, a reduzir tudo a um catolicismo que sabe expressar-se mais ou menos bem; parece que ele muitas vezes não viu nada além de nuances onde, porém, há contrastes de cor muito distintos… Há diferenças de espécie, e uma só espécie pode ser a boa, a verdadeira, a sobrenatural.”]
[18. Vie Spirituelle, loc. cit., p. [117].]
Dificuldades do problema
Há aqui, para começar, as duas grandes dificuldades da teologia mística considerada em si mesma: 1.º o objeto é transcendente, pois trata-se da união com Deus considerado em Sua vida íntima, e não mais apenas conhecido naturalmente desde fora, pelo reflexo de Suas perfeições no espelho das coisas sensíveis; 2.º o sujeito de que se trata é o indivíduo humano, do qual diziam os antigos: individuum est ineffabile, decerto que não como Deus, cuja vida íntima está acima das fronteiras da inteligibilidade que é para nós naturalmente acessível, mas porque o indivíduo humano é um composto misterioso de espírito e matéria, matéria pouco inteligível em si e que está, por assim dizer, abaixo das fronteiras da inteligibilidade. Não há ciência senão do geral, do universal, pois a ciência se obtém por abstração da matéria individual, que repugna assim, em certa medida, à inteligibilidade. Daí o mistério do composto humano individual, onde se entrecruzam constantemente os atos das faculdades superiores, a inteligência e a vontade, e os da imaginação, da memória, dos sentidos exteriores, e todas as emoções da sensibilidade ou paixões mais ou menos desregradas, em estado de saúde ou de enfermidade.
Há por conseguinte “noites escuras”, no fundo, muito diversas, que se assemelham superficialmente. Umas vêm de um trabalho profundo da graça divina, outras não, encontrando-se por vezes nestas últimas, sobretudo, neurastenia e muita miséria humana.
Essas dificuldades são as da teologia mística em geral e de sua aplicação mesmo em ambiente cristão e católico fervoroso.
Mas essas dificuldades crescem muito, como é evidente, em se tratando dos místicos de fora, que são o nosso tema.
Não nos esqueçamos de que pode existir e existe, entre a verdadeira mística sobrenatural e a falsa mística assaz manifestamente diabólica, uma certa mística ou pré-mística natural, cujas “experiências” mais ou menos turvas tornam-se a fonte obscura, e por vezes envenenada, dos sistemas mais contraditórios.
Já se disse que certas filosofias não-cristãs nada mais fazem que conceptualizar mística selvagem, que existe desde sempre. Há métodos de êxtase que são pré-históricos.
É certo que essas “experiências” estão dentro do “sentido da verdade”? Temos o direito de conceptualizá-las num sentido cristão de mística autêntica, antes que em sentido panteístico?
Muitas vezes já se falou da falsa caridade, que – por vezes sem se precaver disto – não tem, de maneira alguma, o mesmo objeto formal que a caridade infusa, mas se atavia com o seu nome e no fundo não passa de liberalismo ou vão sentimentalismo. O princípio corruptio optimi pessima se aplica aqui com uma profundidade que frequentemente passa despercebida. Não havendo nada maior sobre a terra do que a verdadeira caridade, que é essencialmente sobrenatural, não há nada pior do que a falsa. Assim também, não havendo nada maior do que a verdadeira mística, que é o exercício eminente das três virtudes teologais e dos dons do Espírito Santo que as acompanham, não há nada pior do que a falsa. Ela é, evidentemente, tanto mais perigosa quanto mais assume as aparências da verdadeira. Poder-se-ia ficar tentado a falar da alma de verdade que nela está presente; não há talvez senão somente um grão de verdade, que longe de ser a alma dela, está a serviço do erro voluntário ou involuntário que é o princípio daquele desvio. Naquilo que é falso simpliciter e não só secundum quid, o verdadeiro é desviado de seu fim. Essas observações, que se dirigem diretamente contra os teósofos, não devem ser esquecidas aqui.
Caso não se considere suficientemente que existe uma pré-mística natural, desemboca-se numa falsificação, para não dizer numa caricatura da vida contemplativa, e isso poderia ser obra de predileção do espírito da mentira, que se oculta o mais que pode sob as aparências da verdade.
Um certo sincretismo modernista é levado a dizer: “Cristo está aqui, ou: Ele está ali.” “Não creiais nele”, diz o Evangelho (Mt., XXIV, 23). De tal ponto de vista, Cristo estaria por toda parte, salvo talvez ali onde Ele verdadeiramente está.
Por onde se vê a dificuldade do problema: como distinguir uma mística sobrenatural que, por causa da ignorância de vários mistérios revelados, permanece bastante amorfa, de uma mística ou pré-mística natural, que aliás pode existir mesmo em almas em estado de graça, como se viu em vários platônicos cristãos, dos quais era às vezes difícil dizer se eram cristãos platonizantes ou platônicos cristianizantes?
A dificuldade aumenta ainda pelo fato de o vocabulário místico vir em parte de Dionísio e dos neoplatônicos e, de certa maneira, não ser rigorosamente próprio à Igreja. Plotino fala muitas vezes de purificação, κάθαρσις {catarse}, mas em sentido completamente diferente que São João da Cruz.
Além disso, esse vocabulário está, frequentemente, bem mais na linha das descrições psicológicas práticas que na das descrições que poderiam ser chamadas de teológicas, ou escritas pela razão especulativa à luz dos princípios revelados. É pois, no fundo, como observava o missionário de que falamos mais acima, uma linguagem demasiado humana, e da perspectiva da “experiência” do homem contemplativo. Não espanta, portanto, que os pseudomísticos dela se sirvam, como os verdadeiros místicos.
Cremos serem estas as principais dificuldades do problema: referem-se umas à natureza do sujeito bastante misterioso, no qual se encontra a obscuridade vinda do alto, a de Deus, cuja luz é inacessível, e a obscuridade de baixo, que vem da matéria, parte essencial do composto humano. Entre essas duas obscuridades, é muito difícil de distinguir a verdadeira mística sobrenatural de suas analogias naturais. A dificuldade aumenta por decorrência do vocabulário, muitas vezes, bastante comum aos verdadeiros e aos falsos místicos; ela aumenta ainda pela impossibilidade de ver, e de ver viverem, “os místicos de fora”, que não nos são conhecidos a não ser por documentos com frequência bastante incompletos. Já é bem trabalhoso para um diretor julgar bem um dirigido, que ele conhece só por alguns colóquios e por cartas, chegando às vezes a um julgamento muito diferente do proferido por pessoas bastante sensatas que veem viver todos os dias e há muito tempo esse dirigido. Com quanto mais razão será difícil proferir juízo exato sobre “os místicos de fora” de que se trata aqui! Sem embargo, estando a questão colocada aos teólogos e aos missionários, cumpre saber a que princípios diretores recorrer, para procurar resolvê-la.
II. – ELEMENTOS DE SOLUÇÃO
Vários destes elementos foram indicados por dois teólogos que viveram em meio aos muçulmanos, o pranteado Padre Lemonnyer e o Padre Allo, em La Vie Spirituelle de 1.º de maio de 1932 [19], bem como pelo Sr. J. Maritain na sua última obra, notabilíssima a mais de um título: Distinguer pour Unir, ou: Les Degrés du Savoir [20].
Elevemo-nos progressivamente dos graus eminentes da ordem natural para os graus superiores da ordem da graça. Haveria, para começar, deste ponto de vista, muito que dizer sobre o trabalho da imaginação e da sensibilidade mais ou menos desordenada em cima dos primeiros dados de que vive o sentimento religioso, quer provenham estes da razão natural que se eleva para Deus, ou de tradições religiosas mais ou menos alteradas. Esse domínio é ilimitado: basta pensar nas fantasias por vezes inverossímeis dos poetas, mesmo cristãos e católicos, sem nem mesmo falar dos decadentes. Para nos restringirmos, só formularemos os princípios relativos à atividade de nossas faculdades superiores: inteligência e vontade.
Esses princípios de solução dizem respeito, como se vê, antes de tudo à contemplação natural e ao amor natural de Deus, na medida em que são possíveis no estado atual; e, em seguida, às diferentes formas de inspiração superior que o homem pode receber. É fácil de reconduzir os princípios diretores a estas duas categorias.
[19. A. Lemonnyer, L’existence des phénomènes mystiques est-elle concevable en dehors de l’Église ?, onde é lembrada (p. [73-77] sq.) aquela boa distinção entre “as graças místicas menores, que podemos chamar de suplência (por causa da fragilidade do sujeito ou das dificuldades especiais em que ele se encontra) e as graças místicas maiores, que nomearemos de perfeição”; é destas últimas que falam habitualmente os autores místicos, especialmente Santa Teresa, a partir da IVª Morada, ou das primeiras orações passivas.]
[20. Ver nessa obra a IIª Parte, cap. VI, Experiência mística e Filosofia, especialmente p. 532-539: “Existe experiência mística de ordem natural? 532. — Primeira objeção, 534. — Segunda objeção, 535. — Terceira objeção, 539... As analogias naturais da experiência mística, 555-573.”]
O conhecimento natural e o amor natural de Deus
Importa recordar que, segundo o ensinamento da teologia católica tal como vem formulado por Santo Tomás de Aquino (Ia, q. 60, a. 5; Ia-IIae, q. 109, a. 1, 2, 3; IIa-IIae, q. 26, a. 3), o homem, após sua queda [21], pode ainda, sem a graça, por suas forças naturais, conhecer a existência de Deus autor de nossa natureza, os atributos divinos mais manifestos, e amar a Deus autor de nossa natureza, com amor natural ineficaz, o qual, sem nos fazer renunciar ao pecado mortal, ou seja, sem retificar fundamentalmente o nosso querer e a nossa vida, leva-nos a admirar as perfeições de Deus naturalmente cognoscíveis, Sua infinita sabedoria e bondade. [22] Essa admiração é, ela própria, princípio de veleidades que, em uma alma naturalmente poética, principalmente nos grandes artistas, se exprimem com um lirismo que pode fazer pensar na verdadeira mística. Pode não haver aí, todavia, nada além de um sentimentalismo cheio de flutuações enganosas e cujos mais belos arroubos não passem de fogo de palha.
Em almas naturalmente dotadas de inteligência vigorosa ou de vontade forte, esse amor natural e ineficaz por Deus, autor de nossa natureza, parecerá mais intenso, sobretudo se ele se unir, como num Plotino, ao amor à filosofia; ou, como em outros, ao amor à arte; ou ainda, ao amor à pátria, num povo oprimido.
É aí que facilmente se encontrará uma prefiguração natural da vida mística que poderá iludir, se nos esquecermos da palavra de Jesus: “Não são todos aqueles que me dizem: Senhor, Senhor, que entrarão no reino dos céus, mas, sim, aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mt., VII, 21). Não nos esqueçamos, tampouco, de que no plano atual da Providência todo homem está ou em estado de graça, ou em estado de pecado mortal; está voltado para Deus ou afastado d’Ele, sem meio termo; a indiferença absoluta não é possível com relação a Deus.
Em seguida, sobre as analogias naturais da verdadeira mística, é necessário notar aquilo que diz o Pe. Lemonnyer, art. cit., p. [78]: “Que, por exemplo, fatos de catalepsia especial, materialmente semelhantes ao êxtase místico, ou de levitação, ou de radiação luminosa, ou estados psíquicos mais ou menos análogos às provações místicas possam aparecer fora da Igreja e ser realmente observados, que nos importa isso, e quais objeções de princípio se imagina que tenhamos a opor-lhes? Normais ou patológicos, naturais ou diabólicos, são fenômenos que não exigem necessariamente causa divina.
“Nem mesmo consideramos a aparição deles impossível sob a dependência de uma contemplação natural com objetivo religioso, como podia ser a contemplação neoplatônica, como pode ser a contemplação búdica, teosófica ou qualquer outra de afinidade cristã. Essa contemplação natural, preparada e sustentada por uma ascese conveniente, conduzida em virtude de um método e prática bem planejados até um grau excepcional de intensidade, pode comportar consequências psíquicas e – o temperamento contribuindo, principalmente se a imaginação e a emotividade fizeram sua parte – consequências corporais, materialmente semelhantes a tais ou quais fenômenos místicos acessórios, salvo, sem dúvida, a levitação. Facilimamente, alucinações aí se mesclarão, suscetíveis de evocar a ideia de visões proféticas.” Haveria muito que dizer, a esse respeito, sobre o temperamento de certas raças predispostas à passividade e ao fatalismo.
[21. Por causa dessa queda, ele nasce pecador, “aversus a Deo, directe aversus a fine ultimo supernaturali et indirecte aversus a Deo fine ultimo naturali” {N. do T. – Tradução livre: “apartado de Deus, diretamente apartado do fim último sobrenatural e indiretamente apartado de Deus, fim último natural”}, pois todo pecado que vá diretamente contra a lei sobrenatural vai indiretamente contra a lei natural, que nos prescreve obedecer a Deus não importa o que Ele ordene.]
[22. Cf. os Comentadores de Santo Tomás no tratado da graça, Ia IIae, q. 109, a. 3. A maioria formula assim a questão: “Utrum homo lapsus possit diligere Deum super omnia ex solis viribus naturalibus sine gratia? et Utrum homo lapsus possit sine speciali gratia omnia legis naturalis praecepta implere?”. {N. do T. – Tradução livre: “Se só por suas próprias forças naturais e sem a graça o homem pós-lapsário pode amar a Deus acima de todas as coisas?” e “Se o homem pós-lapsário pode, sem uma graça especial, cumprir todos os mandamentos da lei natural?”} Nós tratamos amplamente, noutra parte, desse amor natural e ineficaz por Deus: L’Amour de Dieu et la Croix de Jésus, t. I, p. 107-150.]
Porventura o amor natural a Deus, de que acabamos de falar, pode atingir aquilo que foi chamado de “apreensão imediata de Deus”, e que permitiria falar aqui não mais apenas de pré-mística natural, mas de mística natural propriamente dita?
O panteísmo, especialmente o de Plotino e, mais ainda, o de Espinosa, responde afirmativamente. Explicamos noutra parte por que a teologia católica deve responder: não. [23] Seria a confusão entre a natureza e a graça.
Há diferença de objeto formal entre a intuição obscura natural de Deus conhecido desde fora, no espelho das coisas sensíveis, sem a graça da fé, e o conhecimento sobrenatural e quase-experimental de Deus, fundado na Revelação divina e na fé infusa unida à caridade e esclarecida pelos dons do Espírito Santo. Unicamente o conhecimento sobrenatural pode chegar a alcançar “as profundezas de Deus”, como diz São Paulo (I Cor., II, 10); noutros termos, somente ele atinge a vida íntima de Deus, a Deidade, primeiro obscuramente pela fé e claramente em seguida pela visão beatífica. [24]
O Sr. Maritain insiste com toda a razão neste ponto (Op. cit., p. 533): “Admitir, a qualquer grau que seja, sob as formas mais simplesmente esboçadas que se queira, uma experiência autêntica das profundezas de Deus no plano natural seria necessariamente: ou confundir nossa intelectualidade de natureza, especificada pelo ser em geral, com nossa intelectualidade da graça, especificada pela essência divina mesma; ou então confundir a presença de imensidade, pela qual Deus está presente em todas as coisas a título de Sua eficiência criadora, com a inabitação santa pela qual Ele está especialmente presente, a título de objeto, nas almas em estado de graça; ou ainda, baralhar em um mesmo conceito híbrido a sabedoria de ordem natural (a sabedoria metafísica) e o dom infuso de sabedoria; ou enfim, atribuir ao amor natural por Deus aquilo que pertence exclusivamente à caridade sobrenatural. De todo modo, seria confundir o que é absolutamente próprio à graça com o que é próprio à natureza.”
Se a vida vegetativa, a vida sensitiva e a vida racional constituem três ordens distintas, com maioria de razão cumpre reconhecer acima delas a ordem da vida propriamente divina, superior à vida racional do homem e à vida angélica.
Somente assim pode-se salvaguardar o sentido das palavras de São Paulo (I Cor., II, 9): “São coisas que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passaram pelo coração do homem: as coisas que Deus preparou para aqueles que O amam. Foi a nós que Deus revelou-as por meio do Seu Espírito; porque o Espírito tudo penetra, mesmo as profundezas de Deus. Porque qual dos homens conhece o que se passa no homem, senão o espírito do homem, que está nele? Assim também, ninguém conhece o que se passa em Deus (Sua vida íntima), senão o Espírito de Deus.” Que distância há entre conhecer de fora o Vigário de Jesus Cristo, pelo que todo o mundo sabe a respeito dele, e conhecer sua vida íntima! Com maioria de razão, que distância há entre conhecer Deus de fora, pelo reflexo de Suas perfeições na ordem criada, e conhecer a Sua vida íntima ao menos obscuramente por revelação divina!
Por isso, sempre foi necessário, para ser salvo, ter fé infusa explícita no mínimo nestas duas verdades primeiras da ordem sobrenatural: Deus, autor da salvação, existe e Ele é remunerador: “Deus est et remunerator est” (Hebr., XI, 6). Sem essa fé explícita não há como ter fé implícita nos demais mistérios sobrenaturais.
Ainda que o nosso amor natural de Deus fosse eficaz, como poderia sê-lo sem a graça caso o homem não estivesse caído, caso se achasse ele em estado de pura natureza e, sobretudo, de natureza íntegra, ainda assim o homem não atingiria aquela “apreensão imediata de Deus”. Nem mesmo a alcançariam os anjos, que têm necessidade como nós de ser elevados à ordem sobrenatural da graça, para conhecer obscuramente primeiro, e claramente em seguida, a vida íntima de Deus ou o mistério da Deidade (Cf. Santo Tomás, Ia, q. 62, a. 2). Há uma distância imensurável entre conhecer Deus enquanto Deus, em Sua vida íntima, mesmo obscuramente, e conhecer Deus desde fora, como o Primeiro Ser e Primeira Inteligência, pelo reflexo de Suas perfeições nas criaturas.
É porque o nosso amor natural por Deus não pode alcançar essa experiência da vida íntima de Deus, que nós não falamos de “mística natural”, mas somente de “pré-mística natural”.
[23. L’Amour de Dieu et la Croix de Jésus, t. I, p. 199-205: “Que pensar de uma apreensão imediata de Deus na ordem natural”.]
[24. É precisamente porque a Deidade, ou a Essência divina como tal, constitui um OBJETO FORMAL que ultrapassa infinitamente o objeto próprio de toda inteligência criada, angélica ou humana, que Santo Tomás pôde escrever C. Gentes, l. I, c. 3: “Quod sint aliqua intelligibilium divinorum, quae humanae rationis penitus excedant ingenium, EVIDENTISSIME APPARET.” {N. do T. – Tradução livre: “Que, dentre as verdades referentes a Deus, haja aquelas que excedem totalmente a capacidade da razão humana, É EVIDENTÍSSIMO.”}
O objeto próprio de nossa inteligência é efetivamente o ser inteligível das coisas sensíveis; a partir daí, ela pode naturalmente elevar-se ao conhecimento da existência de Deus e das perfeições analogicamente comuns a Deus e às criaturas, mas ela não pode elevar-se a conhecer (“quidditative”) o que é em si A DEIDADE, objeto formal da inteligência divina, nem o que pertence PER SE PRIMO, essencialmente e imediatamente a este objeto formal. Como diz Santo Tomás, ibid.: “Sensibilia ad hoc ducere intellectum nostrum non possunt, ut in eis divina substantia videatur quid sit, quum sint effectus causae virtutem non aequantes.” {N. do T. – Na tradução de D. Odilão Moura, OSB: “As coisas sensíveis não podem levar o nosso intelecto a ver nelas o que é a substância divina, porque elas são efeitos não equivalentes à virtude da causa.”}
Os anjos não podem, tampouco, conhecer naturalmente aquilo que é o objeto próprio da inteligência divina: “Non autem naturali cognitione angelus de Deo cognoscit quid est, quia et ipsa substantia angeli, per quam in Dei cognitionem ducitur, est effectus causae virtutem non adaequans”. {N. do T. – Tradução livre: “O intelecto angélico, porém, não conhece naturalmente o que Deus é, porque a própria substância angélica – da qual o anjo se serve para chegar a conhecer Deus – é efeito não equivalente à virtude de sua causa.”}
Santo Tomás, ibid., n.º 2. — Item, Ia, q. 1,a. 6: “Sacra doctrina propriissime determinat de Deo, secundum quod est altissima causa: quia non solum quantum ad illud, quod est per creaturas cognoscibile, sed etiam quantum ad id, quod notum est sibi soli de seipso, et aliis per revelationem communicatum.” {N. do T. – Tradução livre: “A doutrina sagrada [ou: teologia sobrenatural] trata, propriissimamente, de Deus enquanto causa excelsa: não somente do que se pode conhecer d’Ele por intermédio das criaturas, mas também do que só Deus conhece de Si mesmo, e que é comunicado aos outros por revelação.”}
É por causa dessa diferença de objeto formal que nós mantemos, contra uma objeção recente, que se pode demonstrar que há em Deus uma ordem de mistérios sobrenaturais, isto é, de mistérios inacessíveis às forças naturais de toda inteligência criada.
É por isso que Santo Tomás disse, na passagem da Contra Gentes que acabamos de citar: “Evidentissime apparet…” Se há um objeto formal que pode constituir uma ordem nova, é o da inteligência divina.
Tratamos desta questão mais extensamente no número de janeiro de 1933 da Revue Thomiste (p. 71-84), e em De Revelatione, Vol. I, cap. 11. {N. do T. – Esse artigo para a Revue Thomiste foi incluído no ano seguinte como o primeiro capítulo da Parte II de seu livro Le Sens du Mystère et le Clair-Obscur Intellectuel (cf. trad. esp. baixável no site ObrasCatolicas.com): é o estudo sobre “A existência da ordem sobrenatural ou da vida íntima de Deus”, em resposta à recém-mencionada objeção.}]
A inspiração superior e suas diferentes formas
Mas se o nosso amor natural por Deus não pode chegar à experiência íntima que, em virtude do dom de sabedoria, só se encontra na verdadeira mística, é não raro dificílimo de distinguir na realidade concreta esse amor natural de um amor proveniente de inspiração superior. É árduo, sobretudo, num filósofo ou alma vigorosa em que esse amor natural por Deus se una a algum outro amor forte que tenha a sua grandeza, e venha acompanhado de uma certa ascese purificadora, como a κάθαρσις de Plotino.
É aqui, principalmente, que pode haver uma pré-mística natural, ainda mais difícil de distinguir bem, concretamente, da verdadeira mística, porque a inspiração superior de que acabamos de falar nem sempre é da mesma natureza, longe disso.
Lendo atentamente as obras de Santo Tomás, vê-se que ele distingue pelo menos quatro espécies de inspirações superiores, dentre as quais duas são de ordem natural, e duas da ordem sobrenatural da graça. Pode-se reduzi-las à tabela seguinte, a ser lida de baixo para cima:
Pode haver, como sabemos, inspirações que não venham direta e imediatamente de Deus, mas dos espíritos criados, bons ou maus. E não é raro que os místicos de fora tenham buscado algum contato com os espíritos.
Como observa o Sr. Maritain (Op. cit., p. 546): “O cuidado que Santo Tomás dedica em refutar as teorias de Avempace, de Alexandre de Afrodísia, de Averróis, sobre a possibilidade, para o homem, de atingir imediatamente por intuição intelectual o mundo dos puros espíritos,[26. C. Gentes, l. III, c. 41, 42, 43, 44, 45.] mostra bem a que ponto a tentação de um tal comércio pode seduzir os filósofos.”
Esquece-se também, com muita frequência, de considerar que pode haver inspiração divina de ordem natural, como a que pode receber um grande filósofo, um grande poeta, um artista de gênio, um legislador, um estratego. Santo Tomás trata disso várias vezes, particularmente na Ia IIae, q. 68, a. 1, citando o capítulo 14 (De bona fortuna) do livro VII da Moral a Eudemo, escrita por um discípulo platonizante de Aristóteles, onde se fala dos homens extraordinários que, movidos por um instinto divino, não têm necessidade de deliberar para fazer grandes coisas. Ver também a Ética a Nicômaco, l. VII, c. I, n. 1, 2, 3, e o comentário de Santo Tomás, lição 1.
O final do Banquete de Platão e parte do Górgias parecem ter sido escritos sob inspiração desse gênero. Donde a expressão: o divino Platão.
Basta recordar alguns leitmotivs de obras wagnerianas ou certas sinfonias de Beethoven, para se dar conta de que a inspiração natural poética ou musical, unida ao amor natural e ineficaz por Deus, possível sem a graça, pode às vezes proporcionar a ilusão de verdadeira mística. Ela a proporcionará ainda mais caso se encontre, como pode suceder, numa alma em estado de graça.
Há muitas vezes também inspirações divinas da ordem da graça, mas é raríssimo que sejam de ordem propriamente mística.
Primeiro que tudo, cumpre assinalar, nas almas que buscam a verdade religiosa, a inspiração que as conduz a crer sobrenaturalmente nas verdades necessárias com necessidade de meio para salvar-se, especialmente nas duas primeiras: Deus est et remunerator est (Hebr., XI, 6), Deus (autor da salvação e não só da natureza) existe e recompensa as boas obras. Esta fé explícita nessas duas primeiras verdades sobrenaturais contém a fé implícita nas demais.
Santo Tomás diz inclusive (Ia IIae, q. 89, a. 6) que quando a criança, mesmo não batizada, atinge plenamente o uso da razão, ela deve ordenar a sua vida a um fim bom, e se ela o faz, recebe pela graça a remissão do pecado original [27], ou seja, é justificada por batismo de desejo. Noutros termos, a criança mesmo não batizada, chegando plenamente ao uso da razão, deve escolher, não somente por veleidade, mas EFICAZMENTE o caminho do bem e afastar-se deliberadamente do caminho do mal. Ora, escolher assim a reta via é já amar eficazmente ao bem mais que a si mesmo e, portanto, é amar eficazmente e acima de tudo ao Sumo Bem, Deus, autor de nossa natureza, conhecido ao menos confusamente.
Isso, o homem caído não pode fazer, como vimos, sem a graça [28]. Para que o cumprimento desse preceito seja hic et nunc {aqui e agora} realmente possível, a criança recebe então uma graça suficiente e, se não resistir a esta, ela recebe um maior auxílio e até mesmo, segundo Santo Tomás, ela é justificada, o pecado original lhe é remido. Este texto da Ia IIae, q. 89, a. 6, deve ser relacionado com aquele bem conhecido do De Veritate, q. 14, a. 11, ad 1m, esquecido pelos jansenistas: “Hoc ad divinam Providentiam pertinet, ut cuilibet provideat de necessariis ad salutem, dummodo ex parte ejus non impediatur. Si enim aliquis taliter (in silvis) nutritus, ductum naturalis rationis sequeretur in appetitu boni et fuga mali, certissime est tenendum, quod ei Deus vel per internam inspirationem revelaret quae sunt ad credendum necessaria, vel aliquem fidei praedicatorem ad eum dirigeret, sicut misit Petrum ad Cornelium.” {N. do T. – Tradução livre: “Pois pertence à Divina Providência fornecer a todos o que é necessário à sua salvação, contanto que da parte deles não se interponha obstáculo algum. Logo, se alguém criado assim (na selva) seguir a direção da razão natural na procura do bem e evitação do mal, deve-se crer firmissimamente que Deus ou lhe revelará por inspiração interior aquilo que é necessário crer, ou dirigirá algum pregador da fé até ele, como enviou Pedro a Cornélio [Act. X, 20].”} Pio IX fala do mesmo modo, num texto citado no início deste artigo (cf. Denzinger, nº 1677). Deus não comanda jamais o impossível e torna possível a todos os adultos o cumprimento de Seus preceitos.
Aqui é mais fácil, do que nos casos precedentes, de discernir – por sua eficácia, pela boa conduta que dele resulta – aquele amor sobrenatural a Deus, de um amor natural ineficaz que, sob certos aspectos, se lhe assemelha. Se a criança, de que acabamos de falar, perseverar no bem malgrado todos os obstáculos que a cercam, ela será salva.
[27. “Cum usum rationis habere incoeperit... primum quod tunc homini cogitandum occurrit, est deliberare de seipso. Et si quidem seipsum ordinaverit ad debitum finem, per gratiam consequetur remissionem originalis peccati” (loc. cit.). {N. do T. – Tradução livre: “Quando começa a fazer uso da razão... a primeira coisa na qual ocorre a um homem refletir então é deliberar sobre si mesmo. E, se ele então dirige-se para o devido fim, ele, por intermédio da graça, receberá a remissão do pecado original.” (Ia IIae, q. 89, a. 6).}]
[28. Cf. Sto. Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 3.]
Finalmente, como observou o Pe. Lemonnyer (art. cit. p. [7]), importa recordar uma distinção feita com frequência pelos teólogos, especialmente pelos tomistas, a propósito dos dons do Espírito Santo, os quais, sendo conexos com a caridade, estão em toda alma em estado de graça.
Dentre as inspirações especiais do Espírito Santo que os dons nos dispõem a receber, há aquelas que nos são concedidas principalmente por causa de nossa fraqueza ou da indigência do meio em que nos encontramos, para realizarmos certos atos salutares e meritórios, que outras pessoas mais fortes ou em ambiente menos ingrato realizariam pelo simples exercício das virtudes infusas com ajuda da graça atual comum. Essas inspirações especiais do Espírito Santo receberam o nome de graças místicas menores ou impropriamente ditas. Não é raro que convertidos recebam-nas no momento de sua conversão, e em seguida por um tempo mais ou menos longo, para suprir de algum modo à falta de formação deles [29].
Outras inspirações especiais do Espírito Santo que os dons também nos dispõem a receber nos são concedidas, sobretudo, em razão da perfeição do ato a ser realizado. Estas, quando a elas não se resiste, dispõem proximamente ao estado místico inicial descrito por Santa Teresa na IVª Morada, e mesmo aos seguintes. Pode-se chamá-las de graças místicas maiores ou propriamente ditas. Dentre os tomistas, João de S. Tomás fez clarissimamente essa distinção [30].
Vê-se, pois, que a inspiração superior de que acabamos de falar se apresenta sob formas muito variadas. Ela pode pertencer à ordem natural, e provir seja dos espíritos criados, bons ou maus, seja de Deus, autor de nossa natureza, como notaram vários filósofos gregos, especialmente o autor da Moral a Eudemo, l. VII, c. 14.
A inspiração superior pode ser também da ordem sobrenatural da graça. E (sem falar aqui da inspiração poética, nem das demais graças por si extraordinárias) ela pode ser mística, quer somente em sentido largo, quer em sentido próprio. A inspiração mística impropriamente dita segue-se geralmente à justificação e é, então, princípio de atos a um só tempo salutares e meritórios; mas ela pode preceder à justificação e dispor a esta mediante atos salutares, mas não ainda meritórios, pois o princípio do mérito é o estado de graça e a caridade.
Acima dos atos naturais que podem conter uma certa prefiguração da mística, há entre os atos sobrenaturais, portanto, grande diversidade, desde os primeiros atos salutares até atos grandemente meritórios, que não são todavia, falando propriamente, de ordem mística. — Cremos serem estes os principais elementos de solução.
[29. Os convertidos recebem por vezes também, no momento de sua conversão, graças propriamente místicas e mesmo graças inteiramente extraordinárias, como a conversão do Padre A. Ratisbonne, que lembra a de São Paulo.]
[30. Cf. João de S. Tomás, Cursus Theol., De Donis, In Iam IIae, q. 68, diss. XVIII, a. 2; Solv. obj. nº 6: Como o Espírito Santo vem em socorro de nossa fraqueza em meio às dificuldades. Cf. Sto. Tomás de Aquino, Ia IIae, q. 68, a. 2, ad 1 e 3. — Nós tratamos noutra parte da influência dos dons do Espírito Santo na vida ascética, influência esta latente e bastante frequente, ou então manifesta mas rara, enquanto que na vida mística ela se torna simultaneamente frequente e bastante manifesta. Cf. Perfection Chrétienne et Contemplation, 6ª ed., p. 371, 404-408, 769.]
O que concluir na ordem da possibilidadee na ordem da existência
Na ordem da possibilidade é mais fácil de se pronunciar:
1º A verdadeira mística, que comporta – que no mínimo prepara proximamente – o conhecimento quase-experimental de Deus presente em nós, não é possível fora do estado de graça; mas, fora do estado de graça, pode haver uma pré-mística natural e, também, influências diabólicas. Essa pré-mística natural pode existir ao mesmo tempo que graças atuais que disponham a atos salutares ainda não meritórios; ela pode até mesmo existir em almas em estado de graça, que fazem atos meritórios, como se viu especialmente em filósofos cristãos de tendência platônica.
2º No plano atual da Providência, em que o estado de pura natureza não existe, todo homem está ou em estado de graça ou em estado de pecado mortal, não existe meio termo. Todo homem está ou voltado para Deus, ou desviado d’Ele, conversus ad Deum vel aversus a Deo. No estado de natureza pura, o homem teria nascido com uma vontade ainda não convertida para Deus, nem desviada d’Ele, mas capaz de se converter ou de voltar as costas para Ele. No estado atual, o homem nasce pecador, “aversus a fine ultimo supernaturali, et indirecte a fine ultimo naturali” [31], pois todo pecado contra a lei sobrenatural transgride ao menos indiretamente a lei natural, que nos prescreve obedecer a Deus no que quer que Ele mande. Por conseguinte, todo homem ou está voltado para Deus, ou apartado d’Ele. Mais precisamente: todo homem, ou ama a Deus eficazmente com um amor de estima (“appretiative”) acima de todas as coisas, o que supõe a graça santificante e a caridade, ou então não atinge esse amor eficaz de Deus, e isso seja por causa do pecado original, se ele não tem o pleno uso da razão, seja também por causa de um pecado mortal pessoal (cf. Sto. Tomás, Ia IIae, q. 89, a. 6). Por isso Nosso Senhor disse: “Quem não está comigo, está contra mim” (Mt., IX, 39), e também aos Apóstolos, o que é consolador: “Quem não é contra vós, é por vós” (Mc., IX, 39; Lc., IX, 50). A indiferença propriamente dita ou neutralidade absoluta não é possível com relação ao fim último. Logo, na economia atual da salvação, todo homem está em estado de graça ou em estado de pecado mortal.
3º O estado de graça é possível fora da Igreja visível, e realiza-se nos homens que, fazendo com a ajuda da graça atual o que está em seu poder, chegam a amar eficazmente a Deus mais que a si mesmos com um amor de estima, senão com um amor sentido. “Facienti quod in se est (cum auxilio gratiae actualis) Deus non denegat gratiam (habitualem)” [32]. {N. do T. – Tradução livre: “A todo aquele que faz o que está em seu poder (com o auxílio da graça atual), Deus não recusa a graça (habitual ou santificante).”}
4º As graças místicas impropriamente ditas, ou menores, não somente são possíveis fora da Igreja visível, como podem ali ser bastante frequentes nas melhores das almas em estado de graça, para suprir à indigência de tais ambientes, onde os filhos de Deus que ali se encontram têm tão poucos auxílios [33]. Assim, as almas que verdadeiramente estejam, no sentido teológico, de boa fé e de boa vontade, podem chegar a um genuíno espírito de oração, como observaram os missionários com bastante frequência. Poderá haver aí, por conseguinte, tentativas mais ou menos duradouras de intimidade com Deus, principalmente se no ensinamento religioso restam vestígios do Evangelho, como na doutrina do Islame e em algumas de suas tradições [34]. A fortiori, essas graças se encontrarão em meios onde, apesar dos erros da heresia protestante ou do cisma, o Evangelho for pregado e Cristo for amado por almas de boa fé [35].
5º Quanto às graças místicas propriamente ditas, ou maiores, pelas quais a alma chega aos estados místicos propriamente ditos, descritos por Santa Teresa a partir da IVª Morada (recolhimento passivo e quietude), elas são possíveis fora da Igreja visível, pois “a graça das virtudes e dos dons” pode desenvolver-se, embora bem mais dificilmente. Mas tudo leva a pensar a priori que essas graças místicas propriamente ditas, raras já na Igreja visível, são raríssimas nesses meios. Pode até ser que existam aqui e ali certos casos do que Santa Teresa chama de IVª Morada, mas é muito duvidoso que haja mais [36].
[31. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 3, e nos comentadores, no início do tratado da graça, a exposição da tese: “Utrum homo in statu naturae lapsae nondum reparatae minores vires habeat ad bonum morale (naturale) quam habuisset in statu naturae purae?” {N. do T. – Tradução livre: “Se o homem em estado de natureza decaída ainda não reparada tem menos forças para realizar o bem moral (natural) do que ele teria em estado de natureza pura?”}.]
[32. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6; e q. 112, a. 3.]
[33. Como observa o Pe. Lemonnyer, art. cit., p. [73] et sq.: “As graças místicas menores são, propriamente, graças de suplência. Deus, para concedê-las, leva menos em consideração o mérito, que a necessidade. Ele as mantém em reserva, antes como socorros misericordiosamente concedidos à fraqueza, que como meios diretos de acelerar o progresso na perfeição… Se há candidatos natos às graças místicas menores, são aqueles católicos incógnitos, membros unicamente da Igreja espiritual… Faltam-lhes tantas coisas…”]
[34. Cf. Pe. Allo, art. cit., p. [108] sq.: “Os ‘sufis’ ou contemplativos maometanos aprofundaram e vivificaram o monoteísmo do Corão, que sempre foi a autoridade dogmática deles; se o cristianismo (eles estimavam enormemente os monges cristãos) exerceu sobre eles algumas influências, foram bem menores que as do neoplatonismo. O Vedanta indiano exerceu também as suas… Naturalmente que não admitiam a Encarnação, dogma cristão. Eles veneravam muito a Jesus… que era para eles o tipo mesmo da união transformante… Eles foram muitas vezes, embora no geral ortodoxos, expostos às calúnias e perseguições dos teólogos literalistas, ao ponto de terem seus mártires, como o famoso Al Hallâj.” Compreende-se que, num meio desses e com tais provações, haja nos melhores uma certa intimidade com Deus e genuínas inspirações do Espírito Santo.]
[35. Essas graças devem mesmo ser mais frequentes depois da Consagração do gênero humano ao Sagrado Coração, feita pelo Papa Leão XIII no começo deste século {vinte}. E Maria, Mãe de todos os homens, certamente obtém a salvação de muitos pecadores. {N. do T. – Mais ainda depois da Consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria, com menção especial à Rússia, realizada pelo Papa Pio XII em 31 de outubro de 1942 (repetida a 8 de dezembro) e, ainda mais explicitamente, em 7 de julho de 1952.}]
[36. Cf. Lemonnyer, loc. cit.: “As graças ou fenômenos místicos maiores supõem uma caridade em vias de se tornar perfeita, e chamada a sê-lo efetivamente. Mesmo no seio da Igreja visível, onde a graça de Jesus Cristo se derrama com maior abundância, são raras, em suma, as almas que Deus assim favorece, após tê-las disposto a tanto. É-se levado a crer que sejam bem mais raras ainda naquela dispersão onde a atmosfera espiritual é menos pura e são tão reduzidos os meios exteriores de santificação... A existência de fenômenos maiores da vida mística permanece perfeitamente concebível naquela porção da Igreja espiritual que é exterior à Igreja visível, se bem que há fortes razões a priori para crê-la raríssima.”]
Se, da ordem da possibilidade, passamos à da existência, é muito mais difícil de se pronunciar.
1º Quase sempre nos faltam os elementos de apreciação necessários para julgar sobre o caráter “essencialmente sobrenatural”, sobre as “experiências”, dos místicos de fora. Somente a Igreja poderia se pronunciar firmemente sobre esses casos.
2º Mesmo para se ter uma séria probabilidade, seria preciso, ao trazer textos desses místicos de fora, não se contentar em reter aqueles que produzem uma sonoridade de mística cristã, mas haveria que expor também os que têm caráter nitidamente panteístico, ou quietista, ou mesmo erótico, como os há em muitos deles.
Sendo suficientemente exigente, os casos seriamente prováveis de verdadeira mística nesses meios seriam verossimilmente bem pouco numerosos e reduzir-se-iam quiçá, em sua maioria, a tentativas de curta duração. Não nos esqueçamos, com efeito, do que São João da Cruz disse até mesmo dos meios católicos mais protegidos (cf. Noite Escura, l. I, c. 9): “Deus não eleva à contemplação propriamente dita todos aqueles que, seguindo o caminho do espírito, desejam alcançá-la; Ele não leva nem sequer a metade.” — Chama Viva, 2ª estr., v. 5: “Por que tão poucos chegam a este alto estado?… (Muitas almas), a partir do momento em que Deus as prova, fogem do labor e recusam-se a padecer a menor secura e mortificação.” Se assim é na Igreja visível, com mais forte razão fora dela.
3º Notemos que seria preciso, consequentemente, mostrar-se reservadíssimo com relação a pretensos místicos numerosíssimos que estão, no mínimo, manchados de monismo panteísta [37]. Sem dúvida, para o bem das almas “de boa vontade” em sentido evangélico, a pré-mística natural que se acha nesses meios pode ser utilizada por Deus, assim como Ele pode utilizar a poesia; São Paulo o fez, em seu discurso perante o Areópago: “In ipso enim vivimus et movemur et sumus, sicut et quidam vestrorum poetarum dixerunt: Ipsius enim et genus sumus” {N. do T. – Na tradução da Vulgata pelo Pe. Matos Soares: “Porque n’Ele vivemos, nos movemos e existimos, como até o disseram alguns dos vossos poetas: Somos verdadeiramente da Sua linhagem.”} (Act. Ap. XVII, 28). Mas nós ignoramos em que medida Deus serve-Se assim, para o bem das almas, dessas flores naturais.
[37. Não obstante, como foi justamente assinalado: “Se o coração é humilde e fiel sem saber dizê-lo, a graça sobrenatural saberá tomar plena posse dele, e tal imperfeição na formulação doutrinal nada mais será que homenagem muda e involuntária à plena transcendência da Revelação cristã.” — As graças prevenientes e de confortação, concedidas às almas mais conscienciosas desses meios pagãos, visam talvez menos, em geral, retificar fórmulas abstratas que traduzem mal por vezes o que está no fundo da inteligência e do coração, que compensá-las no movimento concreto da alma para Deus, delas surrupiando o veneno mediante o vazio da teologia negativa, mediante o espírito de renúncia e de abandono. Assim Eckart e Rosmini juntavam a fórmulas especulativas errôneas uma verdadeira caridade.]
4º Seria necessário, acima de tudo, excluir de entre esses pretensos místicos aqueles que, como os teósofos, querem possuir a beatitude final só pelas forças da sua natureza, o que lembra o pecado do anjo, tal como o descreve Santo Tomás [38], muito mais do que verdadeira mística.
[38. Ia, q. 63, a. 3: “In hoc angelus appetiit indebite esse similis Deo, quia appetiit ut finem ultimum beatitudinis id ad quod virtute suae naturae poterat pervenire, avertens suum appetitum a beatitudine supernaturali, quae est ex gratia Dei.” {N. do T. – Tradução: “O anjo [maligno] desejou indevidamente ser semelhante a Deus, porque desejou como fim último de sua bem-aventurança aquilo a que poderia chegar com suas próprias forças, desviando o seu desejo da bem-aventurança sobrenatural, que é dada pela graça de Deus.”}]
5º Tudo considerado, é bem provável, portanto, que se venha a encontrar muito frequentemente a contemplação natural cara a Plotino e Proclo.
Plotino [39] fala diversas vezes do êxtase e diz que, para unir-nos ao primeiro princípio, é preciso que nos reduzamos à simplicidade absoluta, que ultrapassemos todo raciocínio e toda multiplicidade. “Devemos esperar em silêncio que a luz divina nos apareça, tal como o olho, voltado para o horizonte, aguarda o sol que vai se levantar do Oceano… O pensamento não pode senão elevar-nos, pouco a pouco, à altitude donde é possível descobrir Deus. É como a onda que nos carrega e, dilatando-se, ergue-nos, de modo que, de sua crista, subitamente, nós enxergamos.” Por mais elevada que seja para Plotino, essa contemplação é natural, pois nossa natureza provém aí do Uno por emanação, é nele que nós somos e que nós subsistimos. Nesta forma do panteísmo como nas demais, seria verdadeiro dizer já de nossa natureza aquilo que a doutrina cristã diz da graça: ela é já uma participação da natureza divina.
Proclo [40] diz do mesmo modo: “A alma, ao inteligir, conhece a si mesma junto de todos os seres contingentes. Mas, elevando-se acima da inteligência, ela se ignora e ignora também os contingentes; unindo-se assim ao Uno, ela se compraz no repouso, fechada a todos os conhecimentos, tornada muda e silenciosa, de um silêncio intrínseco.”
Acerca dessa contemplação natural, é necessário recordar-se do que dizem a respeito Ruysbroeck e Tauler. Este último diz no Sermão LV, 5: “Se alguém considerasse esse caminho (da alta contemplação) com uma liberdade abusiva e uma falsa luz, seria a maneira de proceder mais lamentável que poderia haver no tempo. O caminho que conduz a este termo deve passar pela adorável vida e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo… É por esta amável porta que é preciso passar, forçando a natureza, exercitando-se na virtude com humildade, doçura e paciência. Em verdade, sabei-o: quem não vai por este caminho acabará por extraviar-se”. [41] Essa observação é feita certamente para cristãos, mas mostra bem que diferença imensa existe entre a contemplação sobrenatural e aquela que se encontra num Plotino ou num Proclo.
[39. Enéadas, V, 5, 10; IV, 3, 32 {N. do T. – Na versão que pude consultar: V, 5, 8; VI, 7, 36}.]
[40. Procli Opera Inedita, edição de Victor Cousin, Paris, 1864, col. 171.]
[41. Cf. Sermões de Tauler, tradução pelos Rev.s Pe.s Hugueny, Théry O.P., e A. L. Corin. Introdução teológica do Pe. Hugueny, t. I, pp. 92, 93.]
Recordemos, para terminar, as razões pelas quais a verdadeira mística, embora seja o desabrochar normal da vida da graça, é, assim como a perfeita docilidade ao Espírito Santo, coisa rara mesmo na Igreja visível, mesmo nas ordens religiosas, onde se acha todavia o auxílio dos sacramentos, da comunhão cotidiana. Embora esteja ela no desenvolvimento normal da vida da graça, a vida mística permanece um cimo e, lá onde ela existe, ela frequentemente não ultrapassa a IVª Morada ou oração de quietude. A razão disso é que ela exige ordinariamente como condições: pureza de coração, simplicidade de espírito, uma verdadeira humildade, amor ao recolhimento, perseverança na oração, uma ardente caridade, o que se obtém utilizando da melhor maneira possível os grandes meios que a Igreja nos proporciona, os sacramentos, a santa comunhão, deixando-se formar pela liturgia e pelo estudo sobrenatural da doutrina sagrada. Esse conjunto de condições não se encontra realizado com frequência nem mesmo nos católicos, muito menos ainda naqueles que não pertencem visivelmente à Igreja.
E, portanto, – sem negar por mais minimamente que seja que os pagãos recebem graças suficientes que lhes permitem, se a elas não resistirem, chegar à fé infusa das verdades absolutamente necessárias à salvação e à caridade [42], – pode acabar sendo que “a experiência do divino” que se acredita observar em diversos “místicos de fora” não seja, o mais das vezes, senão uma espécie de pré-mística natural, profundamente distinta da verdadeira, que é de ordem essencialmente sobrenatural. Se há algumas tentativas dessa última, parecem ser apenas de curta duração ou não ultrapassar os graus inferiores do conhecimento quase-experimental de Deus.
[42. Santo Tomás diz até que não repugna que Deus faça um milagre para confirmar uma verdade natural da religião ou o valor de uma virtude como a castidade. Cf. De Potentia, q. 6, a. 5, ad 5m, onde ele diz, a propósito de uma vestal que teria carregado água do Tibre num vaso perfurado, como relata Santo Agostinho em De Civitate Dei, l. X, c. 26: “Non est remotum quin sit in commendationem castitatis quod Deus verus per suos angelos bonos hujusmodi miraculum, per retentionem aquae fecisset, quia si aliqua bona in gentibus fuerunt, a Deo fuerunt.” {N. do T. – Tradução livre: “Não se exclui que, para recomendar a castidade, o verdadeiro Deus fizesse por meio de Seus anjos bons um milagre desse gênero, retendo a água, pois se houve entre os pagãos alguns bens, estes vieram de Deus.”} É verdade que esse fato extraordinário não é um milagre propriamente dito, pois não excede o poder natural dos anjos bons ou maus.]
A gente se dá conta disso melhor, ao comparar esses ensaios com o espírito e a vida dos santos, por exemplo o que São Paulo diz da vida dos Apóstolos: “Chamados de impostores e contudo verídicos, de desconhecidos embora bem conhecidos; considerados como moribundos, e eis que estamos vivos; como acabrunhados, nós que estamos sempre alegres; como pobres, nós que enriquecemos a muitos; como não tendo nada, nós que possuímos tudo” (II Cor., VI, 8-10). Tal é a verdadeira mística, com os sinais que a acompanham.
Esta solução, cremos ser ao mesmo tempo firme, para responder às exigências dos princípios, e bastante maleável, para respeitar os diferentes modos de ação da graça divina nas almas. Ela evita os dois erros que assinalamos no início deste artigo: o naturalismo e um pseudo-sobrenaturalismo estreito como o dos jansenistas. Ela mantém, de um lado, que é uma grandíssima graça nascer na Igreja Católica, e ela afirma com vigor, por outro lado, que Deus não manda jamais o impossível e que Ele torna realmente possível a todo adulto o cumprimento dos preceitos que eles têm de observar.
Frisando-se, como fizemos, as deficiências desses místicos de fora, cremos que se propõe melhor a verdadeira vida àqueles que, segundo a expressão de São Paulo, buscam-na como que às apalpadelas (Act., XVII, 27) e que, pela graça de Cristo, mas somente por ela, podem encontrá-la e perseverar nela até a morte.
Recordemo-nos de que Leão XIII, no começo deste século [vinte], consagrou o gênero humano ao Sagrado Coração de Jesus; a irradiação dessa graça deve aumentar neste ano jubilar [a. 1933] que marca o aniversário da Redenção.
Roma, Angelico.
Fr. Rég. GARRIGOU-LAGRANGE, O. P.
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